Quipapá e Garanhuns, duas cidades do Interior pernambucano ligadas para sempre por uma história de violência inédita na Igreja Católica da América Latina. Noite de 1º de julho de 1957. Na Rádio Difusora de Garanhuns, uma notícia assustadora: o padre de Quipapá, Hosana Siqueira e Silva, acabara de disparar vários tiros de revólver contra seu superior, o arcebispo de Garanhuns, dom Expedito Lopes. Uma tragédia que muitos consideravam anunciada, fruto de um enredo que envolveu durante meses intrigas, brigas e desobediência entre os religiosos. Passados 60 anos do episódio, vários questionamentos ainda cruzam a história oficial do crime, multiplicando as versões sobre o assassinato. São esses enredos periféricos que mantêm vivos o mistério e as lendas que pairam sobre o caso. Neste folhetim da vida real soma-se ainda o arquivamento sobre a morte do padre, assassinado a pauladas em 1997, crime que ainda permanece sem solução. Ao longo das décadas, estes dois personagens continuam fortes no imaginário popular das duas cidades, seja pela gloriosa lembrança ou por uma quase necessidade de esquecimento. Se por um lado Garanhuns trata dom Expedito como santo, por outro Quipapá prefere apagar da memória a sombra da vilania do pároco que, para alguns, amaldiçoa a cidade.
Uma relação inflamada
Difícil encontrar alguém disposto a conversar sobre o crime do padre Hosana em Quipapá. Há quem acredite que ficar repetindo a história traz má sorte, além de constranger os parentes dos envolvidos. As poucas pessoas que conviveram com os protagonistas desta história acreditam que a tragédia poderia ter sido evitada, se não fosse a ação dos linguarudos do município. “Muito do que aconteceu foi culpa da língua do povo daqui. Diziam que ele tinha um caso com uma parente, mas não era verdade”, afirmou a poetisa Eri Luigi, 83 anos. Os boatos da época davam conta que o pároco mantinha um romance com uma prima, Maria José. A jovem morava com ele na casa paroquial, já teria feito um aborto e estaria esperando mais um filho do religioso. Devidamente informado pela população do desvio de conduta, dom Expedito exigiu que ele resolvesse a questão e deixasse a mulher. Maria José teria ido embora. Mas logo chegaram aos ouvidos do bispo a informação de que o padre arrumara uma substituta, de nome Quitéria.
Apesar dos vários relatos de troca de cartas entre o padre e suas amantes, onde estariam escritas confidências da vida a dois, os bilhetes sumiram. Eri Luigi, disse ter tido acesso, no passado, a algumas dessas correspondências, mas que nada havia de comprometedor. “Eu li muitas dessas cartas e ele era respeitador nelas. Não tinha nada disso, de caso”. Para ela, a má relação de Hosana com dom Expedito foi criada pela conjunção do disse-me-disse das beatas insatisfeitas com o temperamento forte e esquisito do padre, que algumas vezes viajava para sua fazenda no município de Correntes e deixava a população sem missa. O empresário Paulo Vieira, 70 anos, também aponta o fuxico da comunidade como estopim para a tragédia. “O que padre Hosana queria era que o bispo deixasse de dar ouvidos aos outros e soubesse da verdade aqui", disse. "O bispo também teve seus erros. O padre nunca teve mulher nenhuma. Isso só poderia acabar em coisa ruim”, lamentou. Viera era coroinha de Hosana naquele tempo e o descreveu como um “homem correto, de poucas palavras, mas de ação”. E também de atitudes intempestivas. Segundo alguns relatos, o pároco chegou a dar surras num vizinho bêbado que espancava as filhas e era agressivo com fieis. Ele ainda andava armado e atirava em cachorros que se aproximavam do seu cavalo, afirmam outros. Foi pelo conjunto da obra, e não apenas por seus romances, acreditam muitos, que dom Expedito, com aval do Vaticano, anunciaria na rádio a excomunhão de Hosana naquele 1º de julho.
O dia fatídico
“Naquele dia o padre celebrou uma missa muito dura contra dom Expedito. Logo depois, disse para o povo que logo mais eles teriam uma notícia vinda de Garanhuns sobre o bispo, mas ninguém esperava algo tão trágico. Foi um sofrimento muito grande para todos e, principalmente, para as duas cidades”, relembrou a religiosa Maria do Carmo Ferreira, 34 anos, sobre o episódio que o avô lhe contara várias vezes na infância. O pároco, sabendo da iminência da excomunhão que seria lida na Rádio Difusora, partiu de Quipapá com a ideia de também usar o microfone para se defender. Tomou o trem e, já em Garanhuns, seguiu de táxi para a rádio. Mas foi proibido de entrar e falar. Enfurecido, seguiu para a casa do bispo. Era perto das 18h30. “Dom Expedito tinha acabado de jantar quando bateram à porta. Assim que ele abriu, padre Hosana, sem dar uma palavra, disparou três vezes à queima roupa. Um tiro no braço e dois no tórax”, contou a missionária Terezinha Araújo Correia, 60 anos, atual curadora do Memorial Dom Expedito Lopes, localizado em Garanhuns. Tudo foi muito rápido. Hosana fugiu para o Mosteiro de São Bento, confessou o crime e pediu proteção de vida, já prevendo que seria caçado pelas autoridades. Enquanto isso, a agonia do bispo ganhava as ruas. Sem ambulância na cidade, ele foi transportado para o hospital na própria cama, colocada sobre uma caminhonete. Na unidade de saúde, recebeu apenas transfusões de sangue e depois de oito horas, já na madrugada do dia 2, morreu.
O nascimento de um mártir
Dom Expedito Lopes era o 5ª bispo da Diocese de Garanhuns e o que menos tempo ficou no posto. Em pouco mais de dois anos no cargo, foi assassinado. Mas também passou a ser aclamado como santo pela população. “A morte chamou muito a atenção das pessoas. Mesmo sabendo quem o feriu, ao invés de ficar revoltado, ele logo perdoou seu algoz. E no leito de morte pedia repetidamente que rezassem pelo padre Hosana”, comentou a missionária Terezinha. O sofrimento do bispo já era encarado como um ato de fé de um mártir e, desde então, passaram a dizer que ali estava um homem santo. Os relatos de milagres relacionados ao bispo logo começaram a aparecer. Entre eles, a de um dentista da cidade que acudiu o religioso baleado e teve as calças molhadas pelo sangue. As vestes foram guardadas e depois usadas como relíquia no difícil parto da esposa que corria risco de morte e se salvou. Mas o milagre mais famoso na época foi o de uma criança alagoana que atribuiu a cura de uma deficiência no pé à interseção do bispo. Pouco depois da morte, ainda na década de 50, as cartas de milagres que não paravam de chegar motivaram a abertura de um processo de canonização na Santa Sé. A religiosa Cândida Araújo, 87, velou a cabeceira da cama do bispo no hospital e é uma fervorosa defensora da santidade do bispo. “Tenho fé de que ainda verei dom Expedito no altar do Senhor.” A tesoureira da Cúria de Garanhuns, irmã Joelma Pinto, disse que o processo estava parado e foi reaberto em 2003, mas anda devagar. “Toda a parte que dependia de nós aqui no Brasil foi feita. Existe uma parte posterior que é feita em Roma e depende de termos uma pessoa lá, que tenha todas as competências necessárias para acompanhar o estudo e fazer a position, que é um documento com todos os fatos, virtudes e relatos de história de santidade dele”, explicou. Enquanto isso, o fervor na cidade não esmorece. “Ainda hoje as intenções de missas de agradecimento à intercessão de dom Expedito na Catedral continuam. São de três a cinco por mês, em agradecimento por graças alcançadas”, afirmou a missionária Terezinha.