Por Igor Cardoso*
Nesta sábado, 10 de março, celebraremos mais uma edição do “Dia de Garanhuns”, ocasião em que serão comemorados os 207 anos de criação de nosso município pela Carta Régia de 1811, firmada pelo então Príncipe Regente D. João. Não é de hoje que o tema das “Datas Cívicas Municipais” vem suscitando controvérsias Pernambuco afora, comumente eivadas de argumentações frágeis, interpretações equivocadas e resistências cegas. Por tal razão, procuraremos, nas linhas que seguem, dirimir qualquer confusão que remanesça sobre o assunto.
Em 1811, o Brasil ainda constituía a principal colônia de Portugal, embora viesse abrigando a família Real desde 1808, fugida das perseguições napoleônicas; e, em funcionando o Rio de Janeiro como a capital “de fato” dos domínios portugueses, se achasse às vésperas de ser elevado a Reino Unido (1815), em associação com a metrópole e com sua região sul-continental, o Algarve.
Vigorava, então, o Absolutismo monárquico, que concentrava nas mãos de El Rei, ou, no caso, do Regente, futuro D. João VI, todas as “funções” do Estado – administrativas, tributárias, legislativas, judiciárias, etc. Essa concentração absoluta de poderes, antítese do postulado iluminista da separação, era uma prática arraigada no Império Português e em quase toda a Europa, prevalecendo no Brasil dos primeiros três séculos de nossa colonização, em uma situação de opressão que, não raro, resvalaria em revoluções como a Pernambucana de 1817.
Em um regime absolutista, a concessão de autonomia política a determinados lugares se traduzia, como o próprio termo sugere, em nada mais que uma “concessão”, isto é, em um ato discricionário do monarca, que, por motivos diversos, permitia, ou não, alguma voz ao localismo, embora sem renunciar à palavra final sobre diversos assuntos, dos mais triviais aos mais relevantes. E essa concessão de autonomia local, quando existia, dava-se por meio da ereção de vilas, como eram chamadas a municipalidades lusitanas, herdeiras das ancestrais comunas romanas.
Tanto assim é que, quando das primeiras cartas de doação, a Duarte Coelho, por exemplo, já lhe seria expressamente facultado pelo monarca o poder régio de “criar vilas”, assim como de levar a efeito a administração judiciária e tributária da capitania, com pequenas ressalvas às regalias reais. Em sua Nova Lusitânia, atual Pernambuco, o donatário erigiu, logo de cara, as vilas de Igarassu (1535) e de Olinda (1537); na vizinha Itamaracá, por sua vez, a respectiva donataria já fizera criar, pouco tempo antes, a primitiva vila da Conceição (década de 1520).
Erigir uma povoação em vila significava dotar-lhe de autonomia política, exercida por uma Câmara Municipal, composta de juízes e vereadores, e de um reduzido corpo de funcionários, com o poder-dever de cuidar dos assuntos de interesse meramente local e de oficiar, quando necessário, à Coroa. Essa autonomia relativa incidia sobre um termo específico, ou território, e carecia de se fazer acompanhar por meios próprios de auferir rendas, normalmente discriminados no próprio ato legal de criação, a fim de fazer frente às despesas oficiais.
Tudo isso consta expressamente da Carta Régia de 10 de março de 1811, amplamente divulgada recentemente, por diligente obra do Instituto Histórico e Geográfico de Garanhuns. De seu texto, chama atenção, particularmente, a circunstância de que, a título de rendas municipais, o Príncipe Regente determinava a taxação do comércio de “bebidas espirituosas”, termo divertido para bebidas alcoólicas.
A par disso, era necessário dotar a municipalidade de um edifício apropriado para as funções camarárias, conhecido em todo o mundo português como Casa de Câmara e Cadeia, em cujo primeiro pavimento deliberavam os “homens bons”, isto é, os varões da elite local, titulares dos cargos municipais; e em cujo térreo funcionava o cárcere, que sobrevivia da caridade pública.
Em Garanhuns, esse edifício foi provido pelo capitão-mor Luiz Tenório de Albuquerque, situando-se na ambiência mais primitiva da vila, o velho “Quadro” da antiga fazenda do Garcia de Simoa Gomes de Azevedo, retratado em célebre bico-de-pena de Ruber van der Linden. O imponente sobrado se encontrava, precisamente, na esquina da atual Av. Santo Antônio com a Rua Melo Peixoto, confinando com o “Home Center Ferreira Costa”; e, em suas cercanias, seria erguido o pelourinho, símbolo por excelência do poder municipal luso-brasileiro.
Como afirmamos, a decisão de criar uma vila levava em conta múltiplos fatores, desde reinvindicações as mais diversas, fosse dos próprios moradores, fosse de prestigiosas autoridades – caso de Garanhuns, em prol de cuja autonomia intercederam tanto o ouvidor da comarca do Sertão quanto o próprio governador de Pernambuco –, até conveniências econômicas.
Nesse contexto, afora Igarassu, Olinda, Sirinhaém (1627) e algumas vilas alagoanas (1636), pelo espaço de dois séculos, quase não seriam criadas novas municipalidades em Pernambuco, capitania que a Coroa procuraria retomar aos donatários após a expulsão dos holandeses, alegando que aqueles não se teriam empenhado o suficiente na vitória ante o jugo flamengo. O Recife se emanciparia, é verdade, porém no contexto excepcional da Guerra dos Mascates (1709), e Goiana ainda pertencia a Itamaracá, quando para lá foi transferida a sede da donataria, em 1685.
Em realidade, nos séculos XVII e XVIII, tempos de abundância de ouro e diamantes nas Minas Gerais, El Rei deixara de ter interesse em conferir autonomia às povoações brasileiras, cobiçoso que andava de deter o máximo controle sobre a rica colônia. Essa situação só viria a se alterar em meados do Setecentos, já sob a égide do Marquês de Pombal, quando os Jesuítas foram expulsos dos domínios portugueses, e suas missões, assim como as das demais Ordens, erigidas em vilas, caso de Assunção (1761) e Santa Maria (1761), nas ilhas do São Francisco, depois extintas; e de Cimbres (1762).
Flores (1810); Garanhuns (março de 1811); Cabo, Limoeiro, Paudalho e Vitória (julho de 1811); todas devem suas autonomias políticas aos ingentes esforços do governador Caetano Pinto de Miranda Montenegro, profundo conhecedor de nosso interior, pelo qual empreendera uma longa e penosa viagem de meses, de Mato Grosso a Pernambuco, pelas adjacências do “Velho Chico”. Ao chegar ao Recife, em 1804, tratou logo de melhorar a administração da província que governaria até a Revolução de 1817, quando daqui seria despachado pelas forças revolucionárias.
Sensível aos rogos do governador, servidor ainda a gozar de sua inteira confiança, D. João assinou a referida Carta Régia que, ao erigir a antiga povoação de Santo Antônio dos Garanhuns em vila, criava o município. Dotado do mesmo termo do antigo Julgado, a abranger uma imensidão de terras que, conforme o ato solene de instalação, em 15 de dezembro de 1813, ia, mais ou menos, de Quipapá a Águas Belas, no sentido leste-oeste, dividindo, pelo norte, com Cimbres (Pesqueira), e, pelo sul, com as Alagoas; não tardaria a que, do precursor município de Garanhuns, fossem emancipados os de Buíque (1854), Bom Conselho e São Bento do Una (1860), que são, portanto, nossos primeiros municípios-filhos.
O que sucedeu em 04 de fevereiro de 1879, por sua vez, foi à elevação da sede do município à categoria de cidade, um título honorífico, que, à época, nada acrescentou à nossa autonomia, conquistada quase sete décadas antes, embora tenha desencadeado pequenas alterações administrativas, como o aumento do ordenado do professor público, ademais de maior prestígio para o município. No belo discurso em que o Barão de Nazaré pleiteia a concessão desse título para a terra que tão bem o acolhera, e na qual lograra restabelecer sua saúde, ele deixa claro aos colegas deputados as implicações e as vantagens de assim procederem.
Em 1879, mesmo sob a égide do Império, a lógica que vigorara por quase quatro séculos no Brasil, herdada da tradição portuguesa, ainda não se havia alterado: erigir um lugar em vila significava criar um município; elevá-lo à cidade, dotar a sede desse município de foros de maior conceito. Em Pernambuco, essa sistemática só mudaria ao tempo da República, mais precisamente em 1909, com a Lei Estadual nº. 991, de 1º de julho daquele ano, a qual estabeleceu que, doravante, todas as sedes municipais teriam o “status” de cidade, e todas as distritais, o de vila. Logo, remonta a essa época, hoje bastante recuada – já faz mais de um século! –, o consolidado senso comum de que vila é sede de distrito, e cidade, sede de município. Antes, porém, não era assim, e os documentos são contundentes.
A tirar por 1879, teríamos a incongruência de que municípios-filhos de Garanhuns, quais os citados de Buíque, Bom Conselho e São Bento do Una, e mesmo o de Correntes, que teve uma autonomia passageira entre 1848-49, seriam mais velhos que o próprio município-matriz, o que é uma inverdade histórica.
A tirar por 1879, infelizmente, nós deixamos passar completamente esquecido o nosso Bicentenário, em 2011, que apenas não foi de todo perdido porque, como protesto a esse negligenciamento, surgiu o Instituto, que já nasceu com um pleito-síntese: o da retificação da “Data Cívica Municipal” – viabilizada, de fato, em fins de 2013, por sensibilidade de nosso Poder Público, que resgatou o dia 10 de março como o “Dia de Garanhuns”, nos termos outrora preconizados pelo mestre Alfredo Leite Cavalcanti.
Não que o 04 de fevereiro não tenha seus méritos; pelo contrário: a elevação de nossa sede municipal à honrosa categoria de cidade, por deferência da Assembleia Provincial, é um feito digno de nota, e as comemorações do Centenário, em 1979, foram muito bem-vindas, como também serão as do Bicentenário, em 2079. Em todo caso, fazia-se necessário esclarecer que nosso município, como ente de direito público dotado de autonomia política, não nascera em 1879, senão em 1811 – feito que, aliás, torna-nos um dos mais antigos do Estado. Eis a glória que, como medida de justiça, celebraremos no próximo dia 10 de março!
*ÍGOR CARDOSO, pesquisador do Centro de Estudos de História Municipal da Agência CONDEPE-FIDEM, e membro do Instituto Histórico, Geográfico e Cultural de Garanhuns e da Academia de Letras de Garanhuns.