MATÉRIA PUBLICADA NO PORTAL DA SECRETARIA DE CULTURA DO GOVERNO DE PERNAMBUCO EM 31 DE JANEIRO DE 2019.
CONFIRA ÍNTEGRA
Fundador de oito grupos de Reisado, dos quais quatro permanecem ativos, Luiz Gonzaga de Lima é bastante requisitado nas principais épocas festivas de Pernambuco. Natural de Garanhuns, somente na edição de 2018 do Festival de Inverno da cidade, Gonzaga de Garanhuns – como ficou conhecido – se apresentou com cinco grupos de reisados, sendo dois deles de amigos. Aos 75 anos de idade, completos no último dia 8 de agosto, o artista exibe uma disposição invejável que lhe permite ter a generosidade de alavancar não só as suas iniciativas, mas também as de outros grupos. Tudo para ver o reisado reinar como merece.
“O reisado para mim é tudo. É como se fosse um medicamento, porque, se não fosse isso, acho que eu já estaria morto. A gente se aposenta, fica lá no canto, cabisbaixo, sem ter um negócio pra desenvolver a mente, aí vai embora logo. Isso me dá ânimo, mas quando termino a apresentação, Deus sabe como as minhas pernas ficam”, brinca ele, que trabalhou por mais de 50 anos como vendedor de tecidos no comércio de Garanhuns e hoje, com mais tempo livre, se dedica mais intensamente ao brinquedo. “Às vezes me apresento também com reisados que não são meus ajudando eles. Geralmente eu sou o mestre, mas quando participo no dos outros sou ajudante”, completa, entregando a receita da vitalidade.
Por isso, a rotina de ensaios depois da aposentadoria passou a ser quase diária. Nas terças-feiras, o mestre ensaia com os Unidos com Alegria; nas quartas com o Garanhuns Cultural e o Reisado Mirim da Convivência; e nas sextas com o Cultura de Garanhuns. Com exceção dos grupos voltados para crianças e adolescentes, Gonzaga segue a tradição do Reisado e mantém os grupos sempre com integrantes mais velhos. “Tem gente que sai, tem gente que morre. No Cultura de Garanhuns já morreram cinco componentes com idade avançada, por exemplo. Tem outros que estão com problemas de saúde, aí não estão participando no momento”, revela ele, que sempre está aberto para receber novos integrantes.
“Quando alguém quer participar, eu chamo para fazer o ensaio e, se passar no teste, fica. De um modo geral, eles vêm atrás de mim. Só não quero pessoas doentes, porque tem gente que tem problemas de coração e não quero piorar isso. Só aceito quando o médico e a família dão permissão”, esclarece ele, sobre os critérios usados na escolha de novos brincantes, buscando sempre manter entre 10 a 25 membros em suas apresentações.
À frente do Reisado Mirim da Convivência, que atende crianças do Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos, e do Reisado EREM Virgem do Socorro, o mestre persiste em ter projetos que aproximem os menores do brinquedo como uma forma de perpetuar a tradição. “Se não investir nas crianças, o reisado acaba. Como é que pode continuar só com pessoas idosas? Tem que ter criança para levar adiante”, responde ele.
TRAJETÓRIA
Essa abertura para os mais jovens dentro do reisado é coerente com a sua própria trajetória com o brinquedo que começou quando ele tinha apenas 13 anos de idade. “Em dezembro de 1954, eu assisti meu primeiro reisado. Eu tinha 12 anos de idade e me chamaram a atenção aquelas cantigas bonitas, as pisadas, aquelas rodadas que o rei dava. Tudo isso me deixou encantado. Até então, eu não brincava nada. Esse foi o meu primeiro passo na cultura popular, minha entrada na vida artística foi com o reisado. No ano seguinte, formei um reisado de garotos e garotas da minha idade. Eu era o mestre, mas era o menor de todos”, relembra Gonzaga, que seguiu com o seu primeiro grupo até 1957.
Depois de um longo hiato, o brincante voltou a dançar reisado após os ensinamentos de Manoel Clarindo da Rocha, a quem chama até hoje de “primeiro mestre”, e com quem participava do Reisado do Mestre Cândido. A partir daí, em 1977, Gonzaga foi convidado a ser o personagem Mateus, no Reisado do Mestre João Gomes, mas a guinada em sua carreira foi quando gravou uma faixa de autoria própria para o LP “Benditos e Reisados”, de 1982, que foi o primeiro disco dedicado ao gênero. Através do trabalho, Gonzaga foi convidado no mesmo ano a se apresentar no programa “Som Brasil”, da Rede Globo, sob o comando de Rolando Boldrin, tornando Garanhuns uma referência nacional em reisado.
“Até hoje eu componho reisados inéditos, mas também canto os de outros mestres. Tem mestre aqui que só quer cantar o dele, mas eu canto o dos outros também”, explica ele, que adota apenas triângulo, pandeiro, viola e agogô para acompanhar a sua cantoria. “A tradição é essa. Tem gente que usa sanfona e zabumba, mas eu não quero. Esses que usam outros instrumentos, eu não acho certo, porque não acertam o tom da peça”, diz ele, que, apesar de não tocar nada, é criterioso na escolha dos músicos. Na viola, por exemplo, não abre mão de Senival Teixeira, com quem se apresenta há mais de 40 anos.
Em 1995, participou do festival “Alô Pernambuco”, tendo conquistado o sexto lugar com a composição que mais tarde deu origem ao CD “Reisado Pernambucano”, sendo a primeira música do gênero gravada no formato. “Foram mil cópias. Não deu para quem quis”, relembra ele, sobre o prestígio que tem em Garanhuns, onde já recebeu o troféu local Anum de Ouro, em 2007, como reconhecimento pelo seu trabalho para o crescimento da cultura da cidade. No ano seguinte, passou a ser uma das atrações mais tradicionais do Polo de Cultura Popular do Festival de Inverno de Garanhuns. “O Mestre Salustiano comandava o palco e disse que me queria lá, aí nunca mais parei”, relembra.
“A gente se apresenta no FIG, no Natal, quando tem festa de igreja, festa de santo, aniversários de cidades”, comenta ele sobre o perfil dos eventos que já o levaram a viajar para cidades de todo o Estado ao longo dos seus mais de 60 anos de atividade com o reisado. “Meu maior desejo era ver o reisado no auge. Quando comecei, tinha reisado que ninguém valorizava, outros que ficavam mais pela zona rural. Formei os grupos em Garanhuns e deu certo”, observa ele, que nasceu no Sítio Susuaruna, quando ainda era parte da zona rural de Garanhuns, mas hoje fica no território da cidade de São João.
LITERATURA DE CORDEL
A sua relação com o centro urbano da cidade também fez despertar, ainda na infância, uma outra paixão. Quando criança, Gonzaga costumava ir às feiras públicas de Garanhuns, onde gostava de ler os cordéis pendurados nas barracas e acabava comprando alguns para ele. Ainda nessa época, começou a escrever suas próprias histórias seguindo as métricas do gênero, mas foi somente em 1973 que publicou seu primeiro cordel, intitulado “Lampião em Serrinha”.
De lá para cá, já escreveu cerca de 350 títulos, sendo considerado um dos melhores cordelistas do Nordeste pelo holandês Joseph M. Luyten, que é pesquisador de literatura de cordel e um dos maiores divulgadores da cultura popular brasileira. Livros de Gonzaga, como “Garanhuns em Versos”, lançado em 2008 com incentivo do Funcultura, também apontam a importância da sua produção literária como fonte de pesquisa sobre a cidade.
A abrangência do seu trabalho alcança ainda territórios internacionais, tendo cordéis seus no museu Off Etnologic, na cidade de Osaka, no Japão, e no Museu Internacional da Santa Fé, que fica no Novo México, nos Estados Unidos. Junto ao poeta e cordelista Bispo, Gonzaga também promoveu a primeira Feira de Literatura de Cordel, em Garanhuns, no ano de 2011.
“Meu nome pouco importa, o que eu quero ver em destaque é a cultura para o povo, para nossa terra. Muita gente diz que eu divulguei Garanhuns mais do que todo mundo, porque eu amo a minha cidade. Para mim, não existe outra igual”, conclui ele, um homem que encontrou nas suas paixões um jeito de acrescentar ao lugar onde vive.